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Contos-->A Mudança dos "Pés-Vermelhos" -- 22/12/1999 - 01:55 (Érica Antunes Pereira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A MUDANÇA DOS "PÉS-VERMELHOS"

Despedida é sempre uma coisa chata. Um ar meio sem graça, de quem é culpado de tudo. Cara de choro ou de riso disfarçado. Melancolia na voz. Embargo no olhar. Dor por dentro. A saudade que já aperta. E os abraços incontidos. As eternas lembranças. O “apareça por lá de vez em quando”. A promessa, “qualquer dia desses”...

É. Aquele sítio estava ficando para trás. Para sempre. Adeus carreador comprido. Adeus cafezal. Adeus granja. Rio e cachoeira, casa de madeira. Adeus cães de guarda buscando galinhas fugitivas. Terreirão e tulha. Azaléias. Bancos debaixo das árvores frondosas. Horta. Forno de barro. Lenha. Garagem e fusca. Tanque e paisagem. Chão vermelho, pé-vermelho.

Mas doía. Uma vida inserida naquele pedaço de terra era desfeita. Uma pequena morte. Que outra experiência começava a despontar lá adiante, num outro lugar. Ali era impossível continuar. A terra andava fraca, o café mirrava. E Lalu estava cansada de tanto serviço. O rapazote também estava farto de plantar, plantar e nunca colher. Então, não lhe restava outra alternativa.

Primeiro um fio de idéia. Depois a idéia por completo. Depois a atitude: “vamos pra Minas?” E o “vamos” gritou do fundo do peito. Vendeu o sítio. Para um vizinho. Preço bom. Que terra ficando pra trás era mais dinheiro perdido.

Mataram todas as galinhas. E os suínos viraram lingüiça. Fizeram as malas. Encaixotaram os trens. Desmancharam a tenda. Alugaram um pau-de-arara. E os trens, as malas e os animais de estimação se foram.

Mudança de sítio é engraçada e sinistra ao mesmo tempo. Tem de tudo. Lenha. Gaiola. Pneu velho. Colchão rasgado ou encapado com chitão. Carroça. Mudas de plantas. Vermífugos. Cadeiras de área. Mesas compridas. Estrados. Armário azul turquesa. Tanque de lavar. E os animais presos em espécies de jaulas, dançando por causa dos buracos.

Uma última incursão do pai de família ao sítio que não mais lhe pertencia. Lembrou da construção da casa. Dessa mesma casa que o tempo corroía. De cada prego, de cada centímetro de madeira que empregara. Quando o banheiro foi feito, que alegria!, estavam virando gente. Os filhos pequenos. “O Carlos nasceu aqui”.

Mas o mesmo Carlos estava louco para ir embora. Era jovem. E jovens querem ganhar a vida. Enriquecer. Casar e ter filhos. Para um dia, lá na frente, acontecer isso que lhe acontecia agora: ter de se desfazer de tudo e partir em busca de um novo ideal.

Sinceramente, se fosse levada em consideração apenas a sua vontade, jamais sairia dali. Que tudo era conhecido, caro. Sentia-se um pouco dono de toda aquela região. Da vida dos vizinhos. Do mercado agora tão escasso.

Do outro lado, a garagem. A porta de tela de arame, para que as galinhas e os gatos não invadissem os motores. O que está escrito na parede? Sabia de cor, nem precisava olhar. Eram as datas mais importantes: “20/07/75 – geada, o café foi pro espaço. 28/05/82 – Carlos nasceu. 15/09/89 – casamento da Lia”... e assim por diante, tudo bem guardado pela letra feia, desigual.

Quando Lia casou, construiu a “casinha”. Pequena, sim, mas pelo menos a filha ficava por perto. Duas janelas, daquelas de taramela, e porta na frente. A decoração. Um quadro de Amado Batista na parede. Sofá de corvim. Jogo de cozinha amarelo. E também um fogão à lenha. Bastava.

Um dia, Lia também foi embora. O marido resolvera trabalhar na cidade. Na fábrica. E São Paulo era muito mais promissora que aquilo ali. Nessa época a Melissa já havia nascido. Sofreu tanto por ficar sem a netinha que lhe beijava as faces e lhe alisava os cabelos. Enfim, tempos idos.

Depois, foi a vez do Pedro. E a “casinha” ficou de novo cheia. Logo veio outro neto. Esse tinha os cabelos enroladinhos e era a cara do pai. Com ternura, surgiu-lhe à mente aquela fileira de dentes iguais. E o menino subindo até à roça: “vô, a vó mandou chamar pro café”. E lá ia ele, sujo de terra, mãos calejadas, chapéu de palha e tez queimada, para tomar um bom gole do “pretinho”.

Mas Pedro também não viu futuro ali. E juntou as tralhas e a família e se foi para Minas. Araguari. E, pelas informações, está bem, tanto que o incentivo para a mudança dos pais partiu dele próprio. Menos mal, muito bem!

Ah! E o terreiro? O terreirão... áureos anos de colheita farta. O café em coco secando ao sol. De manhã espalha, de noite amontoa e cobre com uma lona. A tulha cheia. Fim de ano garantido. Quando vazio, palco das famosas “peladas” de fim de tarde de domingo. E de algumas festas, inclusive as de casamento dos filhos.

Primeiro, o carreador era desse lado de cá. Depois, passou pra lá. Porque comprou outro pedaço de terra do outro lado. A jaqueira ainda permanecia forte, imperativa. Desde os primeiros tempos. Ela sim era fiel às raízes. Não ele, que agora estava indo embora para talvez nunca mais voltar.

E as mangas docinhas, algumas fiapentas, outras livres disso. A sombra enorme, que o abrigava e à sua rede nos dias de folga. Também as jabuticabas iam deixar saudade. E as tangerinas, as “maricotas”, as ameixas. O canavial e os ninhos escondidos.

O pasto e a vaca “Genoveva”. Boa de leite. Garantia dos queijos, requeijões e doces. O touro “Romildo” e seu par de chifres bem feitos. Era nervoso demais. De criança não gostava e muito menos de vermelho. Depois soube que o gado não enxerga cores. Mas não acreditou.

Passando o pasto, lá embaixo, ficava o rio. Raso e de águas cristalinas. E muito verde. E eucaliptos por perto. E bambus. Peixe só tinha pequeno, lambaris, que rendiam até uma boa fritada.

Ia deixando aquele trigo ainda verde, precisado de um pouco de chuva para vingar melhor. E o milho. Ali perto da laranjeira ficava a moringa. Quanta vez não parou, o braço cansado no cabo da enxada, a botina de couro cru pesada, para beber um pouco daquele líquido sagrado?

Uma vez o filho e a nora e o neto vieram visitá-los. O leite azedou. Esquecidos da geladeira. E a “Genoveva” ajudou tanto. Leite gordo, criança gorda, sadia.

E a mulher, depois de um dia cheio, tomada banho e esperando naquela cadeira de pé torto. Lalu não era bonita. Até um pouco esquisita. Pernas varicosas. Cabelo maltratado. Mas uma cozinheira de mão-cheia. E boa mãe. E boa esposa. Talvez um pouco irritadiça, cheia de ciúme, mas ainda assim uma boa esposa.

Os jogos de cartas: “truco”. “Seis só”. Agora não eram seis. Só ele, Lalu e Carlos. Que Lia e Pedro mudaram de vida, imersos numa nova família. Só Jade é que mudou de mundo. De verdade. E agora nem mais isso de visitar o túmulo poderia fazer.

Foi meningite. Era uma menina linda. Novinha ainda. Uns dez anos. Mas não encostava mais o queixo no peito e foi mirrando. Aquela febrona incontrolável. Nem deu tempo de acudir direito. Num agosto qualquer. E a dor da perda foi horrível.

Lalu chorava ao ver as coisas da menina. A pasta da escola. A roupa. Os brinquinhos de jade que ganhara da madrinha para combinar com o nome. Um pedaço dela que se foi. Para nunca mais voltar.

Uma lágrima turvou-lhe os olhos. “É, a vida dá mesmo voltas”. Sonhava em morrer e ser enterrado ali. Achava um pouco tarde para recomeçar a vida. Mas não tinha outra escolha. Era uma imposição. Um castigo divino. Resignado.

De repente, um sorriso. Lembrou-se da sobrinha que foi visitá-los num domingo pela manhã. E uma chuva desabou inadvertidamente. Toda vez que chovia, ficavam ilhados. Que a terra roxa ficava colenta, os carros patinavam e encalhavam.

Mas a moça tinha de ir embora. E, não querendo sujar os pés, que era da cidade e gente da cidade não gosta muito disso não, amarrou um saco plástico em cada pé. Que idéia! Riu-se ao subir, no outro dia, e encontrar aqueles dois sacos abandonados no meio do caminho, grossos de barro. E espalhou a história para quem pôde.

Os parentes gostavam de aparecer lá de vez em sempre. Lalu fazia aquela comideira toda. E juntavam uma porção de tijolos para assar a carne. Todos se refestelavam. E então vinham as discussões sobre a economia. Nunca entendera direito o mecanismo do governo, mas não deixava de, com base em sua situação, prosear duas palavrinhas.

De um salto, lembrou-se dos últimos dias da mãe. Ela ficava naquele quarto do meio. Era inverno e o sol pegava bem de frente. Quando esquentava demais, cobriam a janela com uma colcha vermelha. Não enxergava nada. Um peso vivo, quase morto. Resmungava e dormia. O dia todo. Era uma dificuldade para Lalu banhá-la e trocar-lhe as vestes.

Quem podia imaginar. Quando jovem, fugiu com Lalu e apareceu em casa dois dias depois. E a mãe não queria abrir a porta. Por fim conseguiram entrar. E aquelas palavras saindo de fininho, medrosas: “mãe, eu trouxe a moça”. E a histeria conseqüente: “o quê? E você, menina, não tem vergonha de aparecer aqui? Eu nem conheço você”.

É o que estava pensando, a vida dá mesmo voltas. A nora se tornou a mais dedicada à velha, cuidou-lhe em todos os momentos, sem esperar nada em troca. E a mãe, tinha certeza, devia ter pensado muita vez nessa história.

Carlos vem chegando devagar. “Pai, a mãe tá esperando. V’ambora”. Concordou com a cabeça e fez um gesto como quem diz: “vai indo, já vou”. O rapaz de dezessete anos dá meia volta e dispara. É jovem, e jovens não têm do que se despedir.

Olha o céu, as nuvens brancas que não imitam bichos, já passou do tempo dessas brincadeiras. Não vê mais graça nisso, nem nas bolinhas de vidro, nem no estilingue. Um tempo que já foi e que nem quer mostrar aos netos. É pior. Porque depois o tempo se vai e o sofrimento é maior. Melhor é nem saberem.

Um último adeus àquela casa. Um adeus à azaléia plantada com tanto carinho. Sentia tudo morrendo em seu interior. Tudo se transformando em passado distante.

Apanhou um punhado daquela terra roxa, alvo de tanta crítica, de tanto trabalho seu, dos filhos e de Lalu, e enfiou num litro de refrigerante vazio. Construiria uma ampulheta. Seus dias seriam contados por aqueles grãos de terra. Seria a sua forma de manter vivo aquele universo vivido.

Juntou-se à família, disfarçando a emoção, e limitou-se a uma última olhadela pela paisagem lá pras bandas do rio. “Até um dia”, pensou consigo. E o solavanco faz a mulher se desequilibrar um pouco. Nem uma palavra.

A poeira se levanta, como sempre. O cafezal permanece lá. O dia continua bonito e muito azul. Só eles é que mudam. Para um outro mundo.


Érica Antunes Pereira
e-mail: erica-antunes@uol.com.br


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